Tiozinhos de Forró
Crônicas Forrozeiras. Por Deborah Goldemberg
Cada pessoa com quem você dança um forró, foi o grande amor da vida de alguém. Já parou para pensar nisso? Mesmo pelos mais improváveis, acredite, alguém já deu tudo de si, passou noites em claro, dias em luta, escreveu cartas do fundo da alma, cansou o cotovelo na janela para ver por apenas um instante (ou gastou o olho no Instagram!) e quando, finalmente, pode se encontrar colocou sua melhor roupa, abriu o seu sorriso mais belo, fez festa no olhar e, claro, incendiou o colchão…
Penso nisso toda vez que um “tiozinho de forró”, como eu carinhosamente me refiro aos senhores de idade que frequentam o forró, me tira para dançar. Eles são penteados, bem vestidos e cheirosos. Me preparo para a dançar com eles mais do que com os jovens bonitões. Sinto que em cada passo deles há um rememorar dos amores que eles certamente viveram, ao som de algum baião. Se estão sozinhos nessa noite, significa que o tempo – este implacável – já levou o que de bom lhes trouxe um dia. Intuo que há algo no terreiro do forró que eles buscam reviver na pancada do ganzá ou no compasso da zabumba.
Outra noite surgiu um senhor que devia ter uns 70 anos. Fortão, usava uma camisa florida, dessas que todo forrozeiro tem. Como conduzida, eu sempre me esforço para me encaixar no ritmo dos condutores e logo estávamos bem alinhados, mas foi na transição para a segunda dança – uma canção linda de Santana o Cantador – que se deu o “encaixe mágico”. Nossos corpos se integraram quando os acordes me remeteram ao sertão de Pernambuco, onde trabalhei quando era jovem. Fechei os olhos e deu-se uma espécie de transe.
Quando me dei conta, eu era a sua amada Clarice, sua paixão de adolescência, num baile em Caruaru, bem na praça do coreto, lá na Década de 50. Vestido rodado, cabelos pretos longos, olhos puxados. A banda era de pífanos. Ele era jovenzinho ainda, inseguro e chapéu de vaqueiro. Voltamos ao Remelexo de Pinheiros e ele arrochou o abraço para seguimos num xaxado. Era já na capital e em outros tempos, parecendo São Bernardo, festa de fábrica, na Década de 70. Eu era Gabriela, moça operária, dançando de mini-saia e fumando um cigarro.
Na vibração do corpo dele veio a sucessão de xotes e eu fui de Gabriela para Janaína e Luciana e Jacilda até chegar na mais amada de todas – Dalila. Era como se eu fosse me tornando loira e ruiva e morena e grisalha e minha pele mudando de cor, deixando de ser negra para ser cor de mate e branca, como se pudesse me transmutar em todas as mulheres que ele amou e desejou na vida. Do sertão de Pernambuco, viajamos por lugares e corpos e sensações. Seria fantasia minha? Só minha?
Sei que ao final (pena que chegou ao final…), ele me abraçou forte. Me agradeceu tanto pela dança, que tive a certeza que foi algo vivido a dois. O corpo meu junto ao corpo dele passou a ser o corpo-nosso em dança através do tempo. Que beleza que nessa vida repleta de amores que, como as flores estampadas nas camisas dos forrozeiros estão sujeitas aos murchares dos invernos, existe a possibilidade de uma eterna primavera na memória.
